Entre os temas mais delicados, polêmicos e de difícil consenso não apenas entre especialistas, mas, também, junto à sociedade em geral, a reconstrução do patrimônio perdido, ou profundamente danificado, se coloca como fundamental desafio diante da imensa complexidade que é o universo da preservação cultural.
A luta pela preservação não apenas visa à identificação, proteção, conservação, manutenção e o restauro de bens, reconhecendo significados, outorgando-lhes valores simbólicos e buscando garantir sua perpetuação de forma ativa e consistente, mas, também, enfrenta constantemente a ameaça de desaparecimento de bens relevantes.
A perda irreparável de obras representativas ao longo da história da humanidade faz parte do processo de dominação, ocupação e transformação do território e de seus povos, frequentemente acompanhados do aniquilamento de vidas, em função de acontecimentos traumáticos de causas e proporções variadas.
A rapidez com que mudanças físicas e socioculturais acontecem, a extensão da destruição causada e a natureza e escala dos vestígios que sobrevivem são determinantes para o fenômeno da valoração do passado. Quanto mais rápida e intensamente o mundo se transforma, maior a busca por referências solidificadas com o tempo e maior o valor atribuído a acontecimentos, não apenas longínquos, mas cada vez mais recentes. (LOWENTHAL, 1985)
Historicamente, o fenômeno da destruição pode se dar a partir de duas forças principais, por meio de causa acidental ou intencional.
No primeiro caso, podemos observar ainda duas possibilidades: aquela decorrente de desastres naturais, cada vez mais frequentes e devastadores em função do profundo impacto da ação humana sobre o meio ambiente; ou, de incidentes graves, comumente resultantes da falta de manutenção adequada e ação preventiva, de incompatibilidade de uso, desvalorização e descaso, ou, ainda, por ação criminosa.
No segundo, a ação de destruição intencional segue duas linhas tradicionais: o aniquilamento simbólico, motivado por guerras, embargos econômicos e a vontade de erradicação de povos dominados; ou, a intervenção progressista, empreendida a serviço da inovação tecnológico-cultural e em nome de ideais de desenvolvimento socioeconômico.
Como lidar quando tais ameaças se efetivam? Como enfrentar a experiência traumática da destruição, seja ela parcial ou total? O que fazer quando o desastre, seja qual for a sua natureza, adquire tamanha proporção, que as perdas ultrapassam o âmbito da arquitetura e alcançam dimensões de tragédias humanitárias? Em que medida pode-se considerar a reconstrução de obras arquitetônicas válida para a salvaguarda da integridade de conjuntos de valor histórico e, quão essencial é a reconstituição de elementos unitários dentro de um todo maior, para sua preservação e como forma de superação da dor?
Seja como for, o desafio se impõe e exige soluções. Como qualquer questão relativa à preservação do patrimônio e transformação das nossas cidades, não há receituário ou resposta pronta, fácil ou de simples formulação, uma vez que a subjetividade intrínseca à natureza da construção cultural se manifesta proporcionalmente em relação ao impacto das perdas vivenciadas.
As Cartas Patrimoniais tratam do conceito da reconstrução, em especial, em quatro momentos históricos distintos e, portanto, de modos igualmente diversos.
O primeiro documento internacional que se propõe a estabelecer as bases para a ação preservacionista no mundo, a Carta de Atenas, publicada em 1931, pelo Escritório Internacional dos Museus, da Sociedade das Nações, aponta “uma tendência geral para abandonar as reconstituições integrais, evitando assim seus riscos”, a saber, aquilo que se tornaria conhecido como os chamados falsos históricos. (IPHAN, 2000, p. 13)
Em 1964, a Carta de Veneza, publicada pelo ICOMOS – Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios, reconhece os problemas da preservação cultural cada vez mais complexos e diversificados. Ratifica, entretanto, que todo trabalho de reconstrução ”deve ser excluído a priori, admitindo-se apenas a “anastilose”, ou seja, a recomposição de partes existentes, mas desmembradas.” (Ibid., p. 95)
A Carta de Burra, também publicada pelo ICOMOS, mas em 1980, passa a entender a reconstrução como o “restabelecimento, com o máximo de exatidão, de um estado anterior conhecido; ela se distingue pela introdução na substância existente de materiais diferentes, sejam novos ou antigos. A reconstrução não deve ser confundida nem com a criação, nem com a reconstrução hipotética, ambas excluídas do domínio regulamentado pelas presentes orientações.” (Ibid., p. 248)
Por fim, a Carta de Cracóvia, publicada em 2000, pela Conferência Internacional sobre Conservação, reconhece que “a reconstrução total de um edifício, que tenha sido destruído por um conflito armado ou por uma catástrofe natural, só é aceitável se existirem motivos sociais ou culturais excepcionais, que estejam relacionados com a própria identidade da comunidade local.” (PORTUGAL, 2020)
A mudança de entendimento do conceito ao longo das décadas e a própria aceitação da reconstrução como prática de restauro denotam o amadurecimento da ação preservacionista e a percepção da importância de tais ações como forma de lidar com o drama da experiência de ameaça de aniquilação da identidade e memória de um povo, desejo de recuperação não apenas urbana, mas de sua autoestima, de superação de traumas vividos e da perda irrecuperável diante da catástrofe. (HUYSSEN, 2000)
A partir de então, a reflexão crítica a respeito do tema passa a enfrentar não mais a aceitação da possibilidade de reconstrução em si, mas, sim, a definição dos critérios que devem conduzir tais operações. Desde RIEGL (2006), nos debruçamos sobre as questões de preservação do patrimônio a partir da análise axiológica, de reconhecimento da atribuição de valores investidos no curso da história, atualizando-o e colocando-o como um problema da sociedade.
Assim, as possíveis decisões relativas a qualquer iniciativa de reconstrução estarão, inevitavelmente, relacionadas ao contexto específico de cada obra, envolvendo desde valores reconhecidos no bem perdido, passando pelas causas, circunstâncias e proporções da perda vivida, até o impacto sociocultural que tais eventualidades representam. Tamanho desafio coloca em cheque a relação entre o valor da materialidade e o da memória e afetividade como forma de preservação cultural. (VINCENDON, 2019)
O artigo analisa, por fim, casos recentes de reconstruções, como as realizadas na cidade paulista de São Luiz do Paraitinga, que sofreu grave inundação no ano de 2010, causando o desmoronamento de grande parte de seus bens tombados, cujo processo de recuperação teve fundamental envolvimento e participação da comunidade local.
REFERÊNCIAS
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_____. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
CURY, Isabelle (org.). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
GÜTTLER, Ludwig (org.). Der Wiederaufbau der Dredsner Frauenkirche: Botschaft und Ausstrahlung einer weltweiten Bürgerinitiative. Regensburg: Schnell & Steiner, 2006.
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LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge: University Press, 1985.
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PORTUGAL, Direção-Geral do Património Cultural. Disponível em: <http://www.patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/cc/cartadecracovia2000.pdf> Acesso em: 07 fev. 2020
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia: Ed. da UCG, 2006.
SÃO LUIZ DO PARAITINGA. Rogerio Marques, Valeparaibano. Disponível em: <https://www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br/site/wp-content/uploads/2012/02/jr_n1.pdf> Acesso em: 24 abr. 2010.
VINCENDON, Sibylle. La reconstruction, un débat charpenté. Disponível em: <https://www.liberation.fr/france/2019/04/16/la-reconstruction-un-debat-charpente_1721809> Acesso em: 24 out. 2019.