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Preservar sem sentimento é conservação vazia

Tanto tempo dedicada a estudos e ações de preservação que passei a ter um discurso mais apaixonado do que técnico. Quando falo do assunto, busco despertar no outro o que me comove: a importância de voltarmos nosso olhar para a cidade buscando nela uma sensação de pertencimento.

Existe hoje uma tendência de valorização da formação de memória e, consequentemente, de preservação do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico das cidades. É uma tendência baseada em uma ação social organizada e que se amplia, determinando novos espaços e territórios integrados, que nos permitem estar em contato com existências anteriores às nossas. Dessa forma, cada indivíduo pode se reconhecer como parte de um amplo universo sócio cultural, intensificando o diálogo entre o passado e o futuro.

Meu mais recente objeto de estudo é o bairro do Bexiga, na região central de São Paulo. É um dos bairros paulistanos de maior tradição e que guarda até hoje características das primeiras ocupações e de miscigenação ético-social, entre elementos estruturais da vida urbana, históricos, arquitetônicos e afetivos. Desde o final do século XIX as ruas do bairro foram sendo marcadas pela forte presença dos negros, imigrantes italianos e artistas, estes últimos responsáveis por elevar os espaços públicos à categoria de palco. Assim, o Bexiga acabou sendo tombado pelo Conselho de Preservação de São Paulo (Conpresp), concentrando boa parte dos bens preservados por lei existentes na cidade de São Paulo.

Com o intuito de requalificar seu núcleo histórico, dentro deste estudo, na escola de arquitetura com os alunos, fizemos um inventário que ajuda a compreender a paisagem urbana local. Atribuímos significado ao passado ao estabelecer um juízo crítico em relação aos edifícios e seus elementos de identidade. Um exemplo é o Casarão da Dona Yayá, conhecida como “a louca do Bexiga”, na Rua Major Diogo. O imóvel representa todo o processo de formação do bairro, com espaços que foram sendo adaptados a diversas realidades.

Sobreposições construtivas revelam tipologias e estilos arquitetônicos de diferentes épocas. Construído inicialmente para ser um chalé de tijolos, tornou-se uma casa com varanda no final do século XIX, quando ainda ocupava um terreno de chácara. Recebeu uma fachada neoclássica nas primeiras décadas do século XX, com características burguesas que refletiam as novas condições da sociedade e de um território recém loteado. Tornou-se o sanatório particular para a Dona Yayá e hoje abriga o Centro de Preservação Cultural da USP.

Não existe obra de arquitetura, por mais simples ou complexa, que não contenha traços de uma contínua transformação e adaptação. Tampouco existem monumentos que não guardem em seu desenho ou forma indícios do tempo em que foi concebido. A transformação é algo intrínseco à própria vida. Mas para conservar é preciso intervir e, muitas vezes, transformar, assumindo que cada edificação nunca é estagnada em si mesma. Por outro lado, é preciso ter cuidado para não ferir um princípio básico da preservação: um artefato restaurado não pode se transformar numa outra coisa depois de sofrer uma intervenção.

Conservação e inovação não são questões paradoxais, mas sim princípios em diálogo e interação constante. Cada intervenção deve não apenas reafirmar a existência anterior de uma edificação, mas também estabelecer novos vínculos entre memória e a vida contemporânea.

Preservar é seguir um conjunto de ações que integrem espaços físicos aos elementos formadores de memória. É fazer do presente o ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro. De nada adianta conservar aquilo sobre o que não se tem memória. E para que haja memória de alguma coisa é preciso que haja recordação no sentido literal, a apropriação de algo que nos desperta um sentimento. Sem sentimento não há reconhecimento.

Disso decorre que não se pode conservar tudo, porque não é possível recordar-se de tudo. A conservação sem apropriação de sentimento é conservação vazia e inútil. É conservação nostálgica que não reafirma identidades nem serve à sociedade. Sejamos, portanto, corajosos e humanos. Corajosos para ter olhos críticos sobre a sociedade que fomos. E humanos para aceitar as deficiências, as obsolescências e o contraponto que nos permita viver em harmonia.

Ana Marta Ditolvo é arquiteta e urbanista pela FAAP, mestre em Artes Visuais pela Unicamp e docente pela FAAP. É diretora de Patrimônio da Oscip Museu a Céu Aberto e sócia e coordenadora de projetos na Ambiência Arquitetura e Restauro