Entrevista dada ao Jornal BandNews FM dia 24/01/2024. Aniversário da cidade de São Paulo – 470 anos.
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Trabalho de restauração na Faculdade de Direito da USP envolve apoio de ex-alunos e pretende modernizar estruturas para as gerações atuais e futuras de estudantes, preservando o patrimônio histórico e cultural
Que tipo de alterações uma sala de aula com décadas de existência precisa para receber os alunos de hoje? E como realizar as obras sem alterar suas características históricas e culturais mais marcantes? Esse é o caso do prédio da Faculdade de Direito (FD) da USP, no Largo São Francisco, patrimônio histórico da cidade de São Paulo que vai completar cem anos em 2030. Esse centro importante para a história do ensino jurídico brasileiro e para a memória e identidade de São Paulo está passando por obras para adequar suas salas às estruturas necessárias ao ensino no século 21. Os trabalhos também incluem os espaços que precisam de manutenção e restauração.
O edifício da SanFran, como é chamado pelos estudantes, é tombado como patrimônio histórico e cultural pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Paulo. Por isso, as técnicas para as melhorias em tecnologia e conforto estão de acordo com as diretrizes dos órgãos de preservação.
A restauração segue um Plano Diretor de Preservação, desenvolvido em 2020 pelos arquitetos e urbanistas Marcio Coelho e Ana Marta Ditolvo e aprovado com a supervisão do Conpresp, em nível municipal, e do Condephaat, em nível estadual. “É um instrumento para entender o edifício na sua totalidade, seu tombamento e como ele deve ser preservado, além de definir diretrizes e prioridades de preservação”, explica Marcio.
“Muitas cadeiras estavam danificadas e não havia tomadas para carregar os computadores”, conta Celso Campilongo, diretor da FD, sobre o estado anterior às obras das salas de aula. “E a faculdade tem seu patrimônio preservado, o único lugar de todo o Brasil onde se ensina o Direito desde 1827.”
A modernização e manutenção cobrem mesas, cadeiras, pisos, lambris, pintura, iluminação, forro, ar-condicionado, tratamento acústico e parte elétrica, de áudio e vídeo, com instalação de projetores. Elementos arquitetônicos e o mobiliário, como vitrais, lustres e quadros, também estão sendo restaurados em outros braços da iniciativa. Das ações prioritárias, em primeiro lugar está a reforma da cobertura, já em andamento, para lidar com problemas de infiltração, além de outras questões que representam risco à saúde da comunidade que frequenta o prédio.
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Remix Portraits São Paulo
No último final de semana, o projeto de restauro dos prédios da Secretaria da Justiça, em São Paulo, foi destaque no programa Antena Paulista, na Rede Globo. Os edifícios, que são do final do século XIX e hoje são tombados pelo Condephaat e pelo Conpresp, passaram por um minucioso trabalho de resgate de seus valores históricos. “Durante o trabalho de prospecção, cada abertura que a gente fazia nas paredes era um deleite. Elementos pictóricos, de composição de forro, os ladrilhos de piso e # elementos escultóricos trazem muito do que era São Paulo naquela época”, comentou nossa fundadora Ana Marta Ditolvo, responsável técnica do projeto. Confira a íntegra da reportagem! – Com Fernando José da Costa e Companhia de Restauro 21
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Entre os temas mais delicados, polêmicos e de difícil consenso não apenas entre especialistas, mas, também, junto à sociedade em geral, a reconstrução do patrimônio perdido, ou profundamente danificado, se coloca como fundamental desafio diante da imensa complexidade que é o universo da preservação cultural.
A luta pela preservação não apenas visa à identificação, proteção, conservação, manutenção e o restauro de bens, reconhecendo significados, outorgando-lhes valores simbólicos e buscando garantir sua perpetuação de forma ativa e consistente, mas, também, enfrenta constantemente a ameaça de desaparecimento de bens relevantes.
A perda irreparável de obras representativas ao longo da história da humanidade faz parte do processo de dominação, ocupação e transformação do território e de seus povos, frequentemente acompanhados do aniquilamento de vidas, em função de acontecimentos traumáticos de causas e proporções variadas.
A rapidez com que mudanças físicas e socioculturais acontecem, a extensão da destruição causada e a natureza e escala dos vestígios que sobrevivem são determinantes para o fenômeno da valoração do passado. Quanto mais rápida e intensamente o mundo se transforma, maior a busca por referências solidificadas com o tempo e maior o valor atribuído a acontecimentos, não apenas longínquos, mas cada vez mais recentes. (LOWENTHAL, 1985)
Historicamente, o fenômeno da destruição pode se dar a partir de duas forças principais, por meio de causa acidental ou intencional.
No primeiro caso, podemos observar ainda duas possibilidades: aquela decorrente de desastres naturais, cada vez mais frequentes e devastadores em função do profundo impacto da ação humana sobre o meio ambiente; ou, de incidentes graves, comumente resultantes da falta de manutenção adequada e ação preventiva, de incompatibilidade de uso, desvalorização e descaso, ou, ainda, por ação criminosa.
No segundo, a ação de destruição intencional segue duas linhas tradicionais: o aniquilamento simbólico, motivado por guerras, embargos econômicos e a vontade de erradicação de povos dominados; ou, a intervenção progressista, empreendida a serviço da inovação tecnológico-cultural e em nome de ideais de desenvolvimento socioeconômico.
Como lidar quando tais ameaças se efetivam? Como enfrentar a experiência traumática da destruição, seja ela parcial ou total? O que fazer quando o desastre, seja qual for a sua natureza, adquire tamanha proporção, que as perdas ultrapassam o âmbito da arquitetura e alcançam dimensões de tragédias humanitárias? Em que medida pode-se considerar a reconstrução de obras arquitetônicas válida para a salvaguarda da integridade de conjuntos de valor histórico e, quão essencial é a reconstituição de elementos unitários dentro de um todo maior, para sua preservação e como forma de superação da dor?
Seja como for, o desafio se impõe e exige soluções. Como qualquer questão relativa à preservação do patrimônio e transformação das nossas cidades, não há receituário ou resposta pronta, fácil ou de simples formulação, uma vez que a subjetividade intrínseca à natureza da construção cultural se manifesta proporcionalmente em relação ao impacto das perdas vivenciadas.
As Cartas Patrimoniais tratam do conceito da reconstrução, em especial, em quatro momentos históricos distintos e, portanto, de modos igualmente diversos.
O primeiro documento internacional que se propõe a estabelecer as bases para a ação preservacionista no mundo, a Carta de Atenas, publicada em 1931, pelo Escritório Internacional dos Museus, da Sociedade das Nações, aponta “uma tendência geral para abandonar as reconstituições integrais, evitando assim seus riscos”, a saber, aquilo que se tornaria conhecido como os chamados falsos históricos. (IPHAN, 2000, p. 13)
Em 1964, a Carta de Veneza, publicada pelo ICOMOS – Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios, reconhece os problemas da preservação cultural cada vez mais complexos e diversificados. Ratifica, entretanto, que todo trabalho de reconstrução ”deve ser excluído a priori, admitindo-se apenas a “anastilose”, ou seja, a recomposição de partes existentes, mas desmembradas.” (Ibid., p. 95)
A Carta de Burra, também publicada pelo ICOMOS, mas em 1980, passa a entender a reconstrução como o “restabelecimento, com o máximo de exatidão, de um estado anterior conhecido; ela se distingue pela introdução na substância existente de materiais diferentes, sejam novos ou antigos. A reconstrução não deve ser confundida nem com a criação, nem com a reconstrução hipotética, ambas excluídas do domínio regulamentado pelas presentes orientações.” (Ibid., p. 248)
Por fim, a Carta de Cracóvia, publicada em 2000, pela Conferência Internacional sobre Conservação, reconhece que “a reconstrução total de um edifício, que tenha sido destruído por um conflito armado ou por uma catástrofe natural, só é aceitável se existirem motivos sociais ou culturais excepcionais, que estejam relacionados com a própria identidade da comunidade local.” (PORTUGAL, 2020)
A mudança de entendimento do conceito ao longo das décadas e a própria aceitação da reconstrução como prática de restauro denotam o amadurecimento da ação preservacionista e a percepção da importância de tais ações como forma de lidar com o drama da experiência de ameaça de aniquilação da identidade e memória de um povo, desejo de recuperação não apenas urbana, mas de sua autoestima, de superação de traumas vividos e da perda irrecuperável diante da catástrofe. (HUYSSEN, 2000)
A partir de então, a reflexão crítica a respeito do tema passa a enfrentar não mais a aceitação da possibilidade de reconstrução em si, mas, sim, a definição dos critérios que devem conduzir tais operações. Desde RIEGL (2006), nos debruçamos sobre as questões de preservação do patrimônio a partir da análise axiológica, de reconhecimento da atribuição de valores investidos no curso da história, atualizando-o e colocando-o como um problema da sociedade.
Assim, as possíveis decisões relativas a qualquer iniciativa de reconstrução estarão, inevitavelmente, relacionadas ao contexto específico de cada obra, envolvendo desde valores reconhecidos no bem perdido, passando pelas causas, circunstâncias e proporções da perda vivida, até o impacto sociocultural que tais eventualidades representam. Tamanho desafio coloca em cheque a relação entre o valor da materialidade e o da memória e afetividade como forma de preservação cultural. (VINCENDON, 2019)
O artigo analisa, por fim, casos recentes de reconstruções, como as realizadas na cidade paulista de São Luiz do Paraitinga, que sofreu grave inundação no ano de 2010, causando o desmoronamento de grande parte de seus bens tombados, cujo processo de recuperação teve fundamental envolvimento e participação da comunidade local.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Antônio Luiz Dias de. Um estado completo que pode jamais ter existido. Tese de Doutoramento – FAU USP. São Paulo, 1993.
APPLEYARD, Donald. The conservation of European cities. Cambridge: The MIT Press, 1979.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
BOITO, Camillo. Os Restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001.
_____. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
CURY, Isabelle (org.). Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.
GÜTTLER, Ludwig (org.). Der Wiederaufbau der Dredsner Frauenkirche: Botschaft und Ausstrahlung einer weltweiten Bürgerinitiative. Regensburg: Schnell & Steiner, 2006.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.
LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge: University Press, 1985.
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PORTUGAL, Direção-Geral do Património Cultural. Disponível em: <http://www.patrimoniocultural.gov.pt/media/uploads/cc/cartadecracovia2000.pdf> Acesso em: 07 fev. 2020
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia: Ed. da UCG, 2006.
SÃO LUIZ DO PARAITINGA. Rogerio Marques, Valeparaibano. Disponível em: <https://www.saoluizdoparaitinga.sp.gov.br/site/wp-content/uploads/2012/02/jr_n1.pdf> Acesso em: 24 abr. 2010.
VINCENDON, Sibylle. La reconstruction, un débat charpenté. Disponível em: <https://www.liberation.fr/france/2019/04/16/la-reconstruction-un-debat-charpente_1721809> Acesso em: 24 out. 2019.
Sobre os meios de conter a passagem do tempo: Quais são as formas de preservação que atestam e asseguram a sobrevivência de nossa memória?
De certo, fomos feitos para esquecer, mas os sentimentos mais nobres vêm sempre despertados, mesmo que de forma seletiva, pelos afetos que criamos e pelas lembranças que temos; afetos vivenciados diariamente e lembranças apegadas as tradições e referenciais de memória que são substanciais ao entendimento de quem somos.
As relações de identidade, as sensações de pertencimento, o reconhecimento de nós mesmos como parte de um lugar são contados através da história individual ou coletiva e pautados pela tênue linha entre a realidade e a nossa capacidade de imaginar.
As memórias, que também podem ser individuais ou coletivas, são pontos de conexão entre o homem e o meio, e a materialidade surge então intensificando o elo entre o homem e o tempo, e sua representatividade como um subterfúgio para o esquecimento quando ainda é memória.
Os meios de representatividade da memória assegurados pelas Belas Artes, como por exemplo a arquitetura e a fotografia, entre outras; serão sempre elementos fixadores desta passagem do tempo e, sem dúvida, com muito a dizer sobre as sociedades do passado que refletem significativamente na contemporaneidade.
A arquitetura enquanto meio de construção de artefatos que compõe a paisagem e portanto, elemento dinâmico desta materialidade, assume um importante papel na representatividade do tempo, descrita muitas vezes por estudiosos da preservação em seus documentos, como matéria física primordial , inclusive ressaltando a importância de preservamos sua autenticidade em busca da perpetuação da memória como meio de salvaguardar os valores intrínsecos a estes bens e como garantia de que com isso não deixaremos de ser quem somos nem de pertencermos a um determinado lugar, por mais transitório que seja.
Até mesmo as ruinas aparecem como um caminho que, de certa forma, assegura a leitura do passado e permite a continuidade da história, mesmo que fragmentada e para contemplação.
A fotografia como imagem fixa de um determinado tempo, de um passado próximo ou distante, assume um papel importante na exaltação da memória.
Enquanto a arquitetura é realidade vivenciada e se transforma, a fotografia é figura estática, mas não menos significativa para a continuidade da vida de determinados aspectos relevantes a constituição de uma sociedade que preza pelas suas tradições, visto que representa a realidade do que foi um dia e que, portanto, nos desperta a memória. Tanto é verdade que vem sendo utilizada como ferramenta para registro das ambiências na configuração das paisagens naturais, das cidades e modos de vida, das relações familiares e das relações das pessoas com as comunidades.
Portanto entendo que dentre as possíveis formas de preservação, a arquitetura e a fotografia ainda são e continuarão sendo fundamentais no processo de vivência e documentação das cidades de outros e do nosso tempo e das pessoas que ora as habitam.
Os processos metodológicos para salvaguarda destes bens arquitetônicos e registros iconográficos de interesse que vão desde o reconhecimento das paisagens e seus artefatos, inventário, seleção e estabelecimento de juízo crítico até a declaração de valor, proteção e manutenção de acervos tem garantido a constituição dos nossos referencias de memória.
Como será este processo de identificação, registro e manutenção do meio para garantia da presença dos nossos antepassados nas relações humanas do futuro diante por exemplo da arquitetura reversível – temporária e transitória – e da fotografia digital – de disparos em larga escala?
Quais serão os parâmetros para a constituição do nosso acervo e como ele será utilizado? Quanto esta certa efemeridade do mundo contemporâneo pode comprometer e banalizar os processos que garantem a preservação? São respostas que gostaria de ter.
De qualquer modo, importante é não perdermos de vista a noção de que as sociedades se mantem, se constroem e reconstroem através da constituição de seus referenciais e que estes não podem ser esquecidos, sendo assim, sempre memória.
Ana Marta Ditolvo é arquiteta e urbanista pela FAAP, mestre em Artes Visuais pela Unicamp e docente pela FAAP. É diretora de Patrimônio da Oscip Museu a Céu Aberto e sócia e coordenadora de projetos na Ambiência Arquitetura e Restauro
Nesta semana, o prefeito de São Paulo entregou a reforma do viaduto Santa Ifigênia, no centro, com o calçamento inacabado. O descolamento das pastilhas do piso fez com que uma série de buracos se formassem, dificultando a vida dos pedestres e, especialmente, a dos cadeirantes. A moradora do centro Elizabeth Nascimento teve de pedir ajuda para conseguir mover sua cadeira de rodas após ter ficado presa em um dos desníveis. Como conciliar preservação e acessibilidade em uma mesma intervenção?
Um ponto bastante delicado é pensar o que precisa ser preservado no presente para que se tenha a compreensão do passado. As intervenções precisam estar sintonizadas com a necessidade de permanência das antigas edificações e estas, sempre que possível, devem se adequar às novas condições da sociedade.
É claro que as transformações são necessárias, e as melhorias também. É preciso estar atento à sustentabilidade e à mobilidade urbana sem perder as características históricas do lugar que habitamos. Ao mesmo tempo, é preciso haver um juízo crítico de valor acerca daquilo que é relevante preservar. Assim como também é importante estar ciente das dificuldades: o trabalho de colocação de pastilhas deixou de ser uma prática que indústria domine. Hoje, falta quem saiba executar o serviço com o cuidado que este impõe, cuidado este que por si só já seria capaz de reduzir a quantidade de descolamentos e formação de buracos.
Quando o assunto é o centro histórico de uma cidade, de tradições e composições materiais autênticas, o tratamento precisa ser diferenciado, feito com respeito e com olhar atento aos aspectos de singularidade, como forma de compreensão legítima de sua origem.
Diante da polêmica que envolve a substituição os calçamentos tradicionais de São Paulo na área central, mesma questão levantada em cidades de Portugal, berço desta tradição, é importante entender que esses pisos remetem ao imaginário coletivo dos espaços públicos da cidade do passado e por isso devem ser preservados. Além disso, substituir os calçamentos, permeáveis à água da chuva, por outros materiais impermeáveis é descartar a sustentabilidade e outros aspectos naturais muito importantes.
A cidade precisa ser renovada. Seria muito interessante planejá-la então considerando todos os seus aspectos históricos e de desenvolvimento, sem comprometer o tecido histórico e a fruição da vida, intervindo de forma criteriosa pela manutenção da identidade local.
Preservar os calçamentos históricos é abrir a possibilidade de realizar pequenas adaptações que atendam às demandas de mobilidade. Seria uma oportunidade de resgatar a tradição do fazer manual por meio da formação de mão de obra qualificada. Isso permitira a criação de empregos e a especialização de funcionários capazes de reavivar o conhecimento técnico de gerações anteriores, valorizando não só o calçamento original, mas também seus artífices. E, ainda, prolongaria a vida útil destes revestimentos, algo fundamental do ponto de vista estético, econômico e da acessibilidade.
Por outro lado, descartar o calçamento original é impedir que todos nós desfrutemos da beleza de um período histórico que elevou São Paulo a uma outra categoria de cidade. O conforto do cidadão também passa por ele se sentir parte integrante de um lugar.
Ana Marta Ditolvo é arquiteta e urbanista pela FAAP, mestre em Artes Visuais pela Unicamp e docente pela FAAP. É diretora de Patrimônio da Oscip Museu a Céu Aberto e sócia e coordenadora de projetos na Ambiência Arquitetura e Restauro
Tanto tempo dedicada a estudos e ações de preservação que passei a ter um discurso mais apaixonado do que técnico. Quando falo do assunto, busco despertar no outro o que me comove: a importância de voltarmos nosso olhar para a cidade buscando nela uma sensação de pertencimento.
Existe hoje uma tendência de valorização da formação de memória e, consequentemente, de preservação do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico das cidades. É uma tendência baseada em uma ação social organizada e que se amplia, determinando novos espaços e territórios integrados, que nos permitem estar em contato com existências anteriores às nossas. Dessa forma, cada indivíduo pode se reconhecer como parte de um amplo universo sócio cultural, intensificando o diálogo entre o passado e o futuro.
Meu mais recente objeto de estudo é o bairro do Bexiga, na região central de São Paulo. É um dos bairros paulistanos de maior tradição e que guarda até hoje características das primeiras ocupações e de miscigenação ético-social, entre elementos estruturais da vida urbana, históricos, arquitetônicos e afetivos. Desde o final do século XIX as ruas do bairro foram sendo marcadas pela forte presença dos negros, imigrantes italianos e artistas, estes últimos responsáveis por elevar os espaços públicos à categoria de palco. Assim, o Bexiga acabou sendo tombado pelo Conselho de Preservação de São Paulo (Conpresp), concentrando boa parte dos bens preservados por lei existentes na cidade de São Paulo.
Com o intuito de requalificar seu núcleo histórico, dentro deste estudo, na escola de arquitetura com os alunos, fizemos um inventário que ajuda a compreender a paisagem urbana local. Atribuímos significado ao passado ao estabelecer um juízo crítico em relação aos edifícios e seus elementos de identidade. Um exemplo é o Casarão da Dona Yayá, conhecida como “a louca do Bexiga”, na Rua Major Diogo. O imóvel representa todo o processo de formação do bairro, com espaços que foram sendo adaptados a diversas realidades.
Sobreposições construtivas revelam tipologias e estilos arquitetônicos de diferentes épocas. Construído inicialmente para ser um chalé de tijolos, tornou-se uma casa com varanda no final do século XIX, quando ainda ocupava um terreno de chácara. Recebeu uma fachada neoclássica nas primeiras décadas do século XX, com características burguesas que refletiam as novas condições da sociedade e de um território recém loteado. Tornou-se o sanatório particular para a Dona Yayá e hoje abriga o Centro de Preservação Cultural da USP.
Não existe obra de arquitetura, por mais simples ou complexa, que não contenha traços de uma contínua transformação e adaptação. Tampouco existem monumentos que não guardem em seu desenho ou forma indícios do tempo em que foi concebido. A transformação é algo intrínseco à própria vida. Mas para conservar é preciso intervir e, muitas vezes, transformar, assumindo que cada edificação nunca é estagnada em si mesma. Por outro lado, é preciso ter cuidado para não ferir um princípio básico da preservação: um artefato restaurado não pode se transformar numa outra coisa depois de sofrer uma intervenção.
Conservação e inovação não são questões paradoxais, mas sim princípios em diálogo e interação constante. Cada intervenção deve não apenas reafirmar a existência anterior de uma edificação, mas também estabelecer novos vínculos entre memória e a vida contemporânea.
Preservar é seguir um conjunto de ações que integrem espaços físicos aos elementos formadores de memória. É fazer do presente o ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro. De nada adianta conservar aquilo sobre o que não se tem memória. E para que haja memória de alguma coisa é preciso que haja recordação no sentido literal, a apropriação de algo que nos desperta um sentimento. Sem sentimento não há reconhecimento.
Disso decorre que não se pode conservar tudo, porque não é possível recordar-se de tudo. A conservação sem apropriação de sentimento é conservação vazia e inútil. É conservação nostálgica que não reafirma identidades nem serve à sociedade. Sejamos, portanto, corajosos e humanos. Corajosos para ter olhos críticos sobre a sociedade que fomos. E humanos para aceitar as deficiências, as obsolescências e o contraponto que nos permita viver em harmonia.
Ana Marta Ditolvo é arquiteta e urbanista pela FAAP, mestre em Artes Visuais pela Unicamp e docente pela FAAP. É diretora de Patrimônio da Oscip Museu a Céu Aberto e sócia e coordenadora de projetos na Ambiência Arquitetura e Restauro